O problema da felicidade começa logo na facilidade com qual a invocamos. Procuramos sub-conscientemente dar à felicidade demasiados atributos e associamos à felicidade uma panóplia de coisas boas ou tranquilizantes. O problema da felicidade é exatamente a sua vacuidade. O que é a felicidade? Um estado de euforia? A ausência de preocupações? O nosso orgulho a falar? O conceito é hiper-abrangente e cria-se uma ideia ilusiva e sobrenatural do que é ser normal. Quando pensamos na felicidade talvez o nosso primeiro instinto não seja de confusão, mas quando aprofundamos o assunto torna-se claro o quão confuso o conceito é. A palavra quando pensada desaparece duma maneira que talvez só Virginia Woolfe tenha capturado inteiramente na essência quando falava da alma: «Quanto à alma... a verdade é que não se pode escrever diretamente sobre a alma. Quando se olha para ela, desaparece». É complicado dizer o que é estar ou ser feliz, mas somos reféns do pensamento que temos de estar felizes e de que a felicidade é um dos objetivos mais importantes da nossa vida. Mas conseguimos saber ao certo do que se trata? Na literatura encontramos algumas pistas que nos permitem decifrar esta palavra. Resumidamente encontramos 3 grandes teorias que procuram explicar o que é a felicidade: a hédonica, a do bem-estar da vida e a emocional.
A primeira é a mais fácil de compreender e, de certa maneira, a mais fácil também de se rejeitar. A teoria hedónica defende que a felicidade é acima de tudo um estado mental e que esse estado mental é moldado através do excedente de experiências positivas ou agradáveis sobre todas as outras. A rejeição da ideia é fácil de visionar, queremos mesmo aceitar a ideia que a felicidade advém puramente do prazer das experiências?
A segunda teoria defende que, mais que um estado mental, a felicidade parte da forma como a vida corre à pessoa que a leva. Acima de tudo é um julgamento à vida da pessoa e um ato introspetivo sobre a atitude que uma pessoa leva à vida. Aqui a rejeição partiria mais do pormenor que esta visão é puramente julgativa, a qualidade e a satisfação com a sua vida parte da forma como uma pessoa define o que é uma boa vida e se essa definição é influenciada pelo ambiente em que se insere.
A terceira teoria, e talvez a preferida pelos estoicos, é a emocional. Esta teoria propõe que a felicidade advém do equilíbrio emocional de uma pessoa. Assim sendo, a felicidade parte da forma como as experiências influenciam o nosso estado emocional adicionando uma camada extra à teoria hedónica. A critica aqui passa pela forma como ver a felicidade numa ótica emocional cria uma barreira para o julgamento da qualidade da vida da pessoa. Se tiver dores e decidir ignorar para garantir o equilíbrio emocional estou realmente a ser feliz? Queremos mesmo mascarar os nossos problemas?
A literatura é extensa e interessante sobre o assunto, mas talvez seja prudente reparar que todas as teorias têm por base um conjunto de regras necessárias para alcançar a felicidade e que cada teoria tem a sua própria definição de felicidade. A felicidade tem significados diferentes que variam de pessoa para pessoa, cada uma aborda a questão através da sua perspetiva ideológica. Apesar disto, a ideia comum da felicidade não é propriamente criada com estas teorias ou definições em mente, vamos construindo o que é a felicidade ao longo das nossas vidas, não através da experiência do que é ser feliz nem através do estudo do que é a felicidade mas sim através da forma como a palavra é invocada e de como a queremos usar. Se numa conversa a palavra é invocada para descrever um certo sentimento então vamos absorvendo esse atributo para a palavra.
A palavra está em constante evolução. A nossa ideia de felicidade é moldada pelo ambiente e por isso vemos ao longo da história uma felicidade conformada pelo período à qual nos inserimos. Numa era medieval radiada de pobreza e fome era comum procurar escapatórias à realidade. Os paraísos terrestres apareciam nestes contextos oferecendo mundos fantásticos onde as nossas necessidades eram realizadas. Estes paraísos terrestres eram o cume do que é ser feliz oferecendo em abundância alimento para os nossos desejos mais animalescos.
Um exemplo disto é o país da Cocanha, uma terra lendária sob uma ótica puramente materialista onde os prazeres são abundantes, separando-se de outras utopias mais místicas pelo pouco moralismo. A comida é abundante, e toda a terra é feita das maiores iguarias gastronómicas da altura. Os prazeres de Vénus não eram escassos, as mulheres são descritas como belas e satisfazem quem querem, para além disso, é dito que existe uma fonte da juventude que 'rejuvenesce na hora' qualquer um que se banhe nela. Cocanha é o sonho do camponês medieval e aparece num período histórico onde estas necessidades eram supremas, oferecendo um alivio do trabalho do campo, da penúria, da miséria e da fome. Maioria destas descrições são retiradas de um texto Li Fablius de Cocaigne cujo autor afirma que ao receber a penitência do papa este o enviou para Cocanha, dando a entender que o reino é alcançável através da retidão moral de uma pessoa. Apesar das descrições aparecerem neste contexto, a falta de moralismo é bem retratada no quadro do mesmo nome de Pieter Bruegel, o velho que demonstra a vacuidade espiritual das pessoas que se viam presentes neste reino. A origem da Cocanha é, porém, um poema chamado Unibos. Neste poema uma pessoa chamada Unibos dá a entender a três camponeses que Cocanha se encontra no fundo do mar livrando-se assim dos três camponeses.
Outro exemplo de como eram utilizados os paraísos terrestres é a lenda do Castelo de Alamute. É neste lugar que nasce o conceito de assassinos e assassinatos. O Castelo era do controlo de Hassan, também conhecido como velho da montanha, um líder carismático que alegadamente garantia a sua independência através de assassinatos efetuados pelos seus soldados altamente leais. Segundo reza a lenda, o velho da montanha, de modo a criar soldados para a sua causa, teria descoberto um método infalível. Trazia ainda muito jovens os seus futuros soldados para o topo da montanha de Alamute para um lugar com belíssimos jardins, nele embriagava-os de haxixe, vinho e mulheres, e durante o sono expulsava-os de volta para a tristeza da vida normal com a promessa de poderem voltar ao paraíso terrestre caso realizassem com sucesso o assassinato que lhes era pedido.
Em ambos os casos nota-se que é empregada a ilusão como forma de manipulação. Os donos, por assim dizer, destes paraísos terrestres tinham sempre em antemão os seus interesses em mente, e usavam o paraíso como forma de controlo. O desencantamento do mundo, assim como observado por Weber, faz-nos ver estas histórias através de uma forma mais racional e como tal já não as incorporamos na nossa forma de pensar e atuar. Contudo é um grande erro pensar que a modernidade criou anticorpos para a manipulação das pessoas através das nossas necessidades e desejos. A manipulação é sempre usada com nomes estranhos e o desejo de ser feliz é uma constante. A forma como se mexe com os nossos desejos está em constante mudança e novas ideias sobrepõem ideias antigas para alcançar esse fim. Sissela Bok no seu livro 'Exploring Happiness' alerta para isto e escreve que «O conceito de felicidade, dado o papel central que desempenha nas visões da vida e da morte e nas doutrinas políticas e religiosas, é especialmente suscetível de ser redefinido para tais fins persuasivos. É tentador rejeitar todas as definições persuasivas como não sendo científicas ou vagas... Mas quando se trata de felicidade, como acontece com a beleza ou o amor, aqueles que oferecem uma nova definição convidam-nos a pensar de novo sobre um conceito que podemos ter tomado como garantido.»
A felicidade é importantíssima no contexto moderno porque acaba por ser usada como uma forte ferramenta de marketing com o propósito de vender aquilo que não se tem como necessário à condição de ser feliz. Diariamente são usadas todo um conjunto de técnicas psicológicas que nos prometem felicidade se comprarmos as suas soluções. Um engenheiro do Facebook uma vez disse numa palestra que as melhores mentes da nossa geração estão a pensar como fazer as pessoas clicarem em anúncios. Seja a vender-nos uma identidade através do nosso estilo de vida, como um rumo de uma sociedade através do nosso voto numa eleição. Tudo com base que só seremos felizes quando estas nossas necessidades artificiais que nos são construídas por entidades externas forem realizadas. Procuramos sub-conscientemente alimentar o nosso desejo de felicidade, temos consciente que é imperativo ser feliz e por isso seguimos os conselhos de influencers, life-coaches, self-help gurus, intelectuais, políticos e até psicólogos para a alcançar este objetivo. Para além da publicidade tradicional que encontramos na televisão, este fenómeno é também prevalecente nas redes sociais, e talvez seja nestas plataformas onde encontramos o epitome deste fenómeno. Somos deparados com milhares e milhares de conteúdos que nos vendem indiretamente estilos de vida de forma fantasiosa. Esta venda é feita de maneira despercebida dado que ao contrário da publicidade tradicional o produto vendido não é explicito nem pelo próprio vendedor. O produto vendido é a forma idealizada como a vida deve ser vivida, é a beleza dos momentos que devemos capturar e partilhar porque temos também a crescente necessidade de ser vistos. Não é um acaso que cada vez mais se note no papel corrosivo das redes sociais na nossa forma de pensar sobretudo em crianças e jovens adultos. Só na França, o Financial Times escreve, os níveis de depressão quadruplicaram em jovens entre os 15 e os 24 anos. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, têm se registado também uma clara degradação do bem estar psicológico nos jovens. O resultado desta corrosão por parte das redes sociais é o aumento de sentimentos depressivos, da ansiedade, da dismorfia corporal e do síndrome de FOMO. Não só as nossas necessidades estão em constante mudança como há uma certa obsolescência programada nas necessidades que nos são vendidas. Antes de nos ver satisfeitos com a concretização de uma necessidade é nos logo exposto a existência de mais e mais. Aprendemos a precisar de algo novo e melhor constantemente, a nossa própria forma de pensar é manipulada por esta ideia. Um ciclo vicioso que é feito e desenhado com este propósito em mente, mas que acaba por criar a ilusão que a nossa felicidade está ligada a estas necessidades.
A felicidade é uma bola atrás da qual corremos para onde ela rola, e empurramo-la com os pés quando ela pára.
Johann Wolfgang von Goethe
Se no passado o misticismo era supremo na visão comum do mundo, nos dias de hoje o capitalismo toma esse lugar. Como tal, não nos devemos espantar que num mundo onde a expansão do capital procura capturar todos os aspetos da nossa vida, essa expansão também toque no nosso desejo de ser feliz. Vemos todos os nossos movimentos e atividades naturais com cada vez mais obstáculos financeiros à sua concretização. As nossas amizades passam pelo Facebook, a nossa comunicação pelo WhatsApp, as nossas relações amorosas pelo Tinder. Tudo tem de passar por um meio que seja economicante produtivo e, consequentemente, a sua atividade natural deixa de ser genuína. A falta de genuinidade é uma garantia destes meios que não metem o bem-estar dos seus utilizadores em primeiro plano mas sim a sustentabilidade da empresa, e essa sustentabilidade por sua vez permite remunerar os seus trabalhadores. Aqui entra uma parte importante do esquema: para satisfazer as ondas de necessidades à qual somos expostos precisamos dessa remuneração crescente. Logicamente seria imperativo ligar a felicidade às atividades económicas que são mais bem remuneradas. É com este pensamento que se vê as mudanças da mentalidade de uma sociedade ao longo dos anos; onde no passado o sonho de um jovem era ser astronauta ou cientista, nos dias de hoje o sonho é ser um homem de negócios ou um influencer, profissões que satisfazem as necessidades modernas de sermos vistos e reconhecidos. Estas necessidades são influenciadas também pela crescente veneração do individualismo e da consequente competição entre pessoas, compramos mais e melhor para mostrar que somos mais e melhores. Vê-se os cursos universitários não como caminhos para aprofundar o nosso conhecimento numa área mas como o inicio de uma carreira profissional. Gostamos de ouvir dizer que o dinheiro não traz felicidade mas no mundo em que vivemos somos reféns do dinheiro para saciar o nosso desejo de felicidade.
Recordo uma vez ler que simultaneamente beneficiamos e somos vitimas da língua que falamos. A palavra 'saudade' é exclusiva ao dicionário português pela simples razão que não existe uma tradução direta para outras línguas. Criámos este conceito e esta palavra para exprimir um sentimento que não é fácil de expressar por outras palavras, mas convém reforçar a ideia que este conceito foi criado e é completamente artificial. Várias línguas contam também com esta unicidade relativamente às palavras que não têm tradução direta mas que permitem a criação de conceitos únicos que explicam diversos pontos de vista. A língua alemã é perita nisto, são amalgamadas várias palavras com o propósito de criar um conceito novo e transmitir uma nova ideia. O propósito da linguagem é exatamente esse: fornecer-nos um meio de comunicação que tenha uma utilidade social. Este meio de comunicação, porém, é incompleto e nunca nos permite exprimir as nossas ideias na sua totalidade. Quando invocamos uma palavra associamos à mesma um conjunto de atributos, mas nunca temos noção se esses atributos são partilhados da mesma maneira pela pessoa que nos ouve. O valor que damos às palavras também varia de língua para língua (mesmo para palavras com tradução direta) e de pessoa para pessoa. Esta característica da linguagem faz com que ao longo do tempo palavras e os seus conceitos relacionados mudem de significado ou entrem em desuso. Para além disto, acontece também o caso em que certas línguas simplesmente não tenham palavras para certos conceitos e como tal a inexistência destes conceitos não influenciam a nossa forma de pensar e agir. Existem exemplos de tribos sem palavras para cores ou sentidos de direção, a forma como são expressadas estas ideia muda por completo o modo de raciocínio da pessoa.
A palavra felicidade etimologicamente vêm do latim Felicitas, inicialmente esta palavra era usada para representar uma de duas coisas: a fertilidade de uma mulher ou a sorte de um general. Outras fontes apontam que a palavra felicidade tivesse vindo de outra palavra do Latim: augurium, esta palavra também está associada à sorte. No inglês, uma língua que também nos influencia constantemente nos dias de hoje, a palavra Happiness tem origem no nórdico heppinn cujo significado é, admiravelmente, sortudo ou afortunado. Não deixa de ser peculiar que nestes dois casos vemos que a origem da palavra felicidade é a sorte, algo exterior à nossa pessoa e com uma forte inclinação divina. Rezávamos por sorte numa guerra, por sorte num período de seca ou por sorte na saúde porque sabíamos que não seria só de nós que estas coisas partiam, estávamos condicionados por tudo o que desconhecíamos. A felicidade tal como compreendemos hoje não existia e como tal não pensávamos em ser felizes mas em como navegar pelo nosso destino. Fomos ao longo do tempo adicionando atributos à felicidade que transformaram o conceito num monstro com significado confuso. O que antes simbolizava a sorte, hoje simboliza algo bastante próximo da salvação, de um objetivo para o nosso dia-a-dia através de todo um conjunto de regras a seguir que ninguém sabe ao certo quais são. Deparo-me constantemente com suspiros de pessoas que por algum azar proclamam que só querem ser felizes, mas o problema é que ninguém sabe ao certo o que isto significa. E se a felicidade não existisse? Sem o conceito de felicidade tal como hoje o conhecemos talvez houvesse uma mudança positiva nas mentalidades das pessoas. Talvez o conceito esteja a envenenar o nosso pensamento e a criar uma tendência para a nossa tristeza. Segundo um estudo da Universidade de Berkeley, quanto mais valorizamos a felicidade menos felizes somos. Pensar na felicidade é o primeiro passo para ser infeliz. É inteiramente possível que a gigante ambiguidade da felicidade faça com que não nos consigamos identificar totalmente com a palavra e que a utilidade social da felicidade seja negativa. Ter como objetivo a felicidade é auto depreciativo. Pensar na felicidade é ir ao encontro de um conceito não natural e inexistente de tranquilidade ou prazer perpétuo, é uma inquietação constante na nossa cabeça sem solução. É tranquilizante pensar no oposto: que é possível viver sem as constantes perturbações do desejo de ser feliz.
Só são felizes aqueles que têm a mente fixa num outro objeto que não a sua própria felicidade; na felicidade dos outros, no melhoramento da humanidade, até mesmo numa arte ou numa busca, seguida não como um meio, mas como um fim ideal. Visando assim outra coisa, eles encontram a felicidade pelo caminho.
John Stuart Mill
Podemos viver sem felicidade? Era útil deprecar a felicidade? Significa isto que a palavra felicidade não tem valor? Não, a palavra tem valor e foi por isso que a inventámos. Não só a inventámos como estamos constantemente a utiliza-la e a pensar nela. A palavra tem uso e é bastante natural descrever a felicidade de uma pessoa. Notar diferenças no comportamento duma pessoa ao longo do tempo para dizer se está mais feliz ou não face a episódios que lhe tenham acontecido. Precisamos destas pistas para nos guiar nas nossas interações. Uma amalga de sentimentos bons é nos útil para exprimir aquilo que não conseguimos descrever com palavras mais precisas e complexas. E a verdade está aqui contida: que nós precisávamos da felicidade e criámo-la. Se a felicidade não existisse teríamos de a inventar, mas também temos o dever de perceber e entender a carga mental que este conceito traz. Cabe a cada um de nós desvendar a essência das coisas para que nos precavermos de eventuais maldades que possam ser usadas em seu nome.